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e além da fotografia trocada, a legenda biográfica ainda trunca o nome do livro, passado a chamar-se "última paragem EM massamá". calhando aquilo não é mesmo sobre mim.
rabiscos vieira
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento também conhecido como segurança social, o coronel Álvaro de Campos haveria de recordar o dia em que o pai o levou a ver o café Gelo.
“não me apetece nada, paizinho”
“come um pastel de nata”
“não tenho apetite, paizinho”
“come, alimenta-te, com esse corpo franzino não chegas a lado nenhum”
“Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada”
“Cala-te, senão ainda levas um tabefe com as costas da mão”
daqueles que doem, que deixam os nós dos dedos vincados na face do receptor, o meio é a mensagem, lá dizia o outro que entretanto também já não está entre nós, se calhar também tinha fastio e morreu de fome, coitadinho. Álvaro pensa para com os seus botões,
“ninguém precisa de ser nada, basta estar”.
Quieto. Manso. No fundo, desde que nos cubram com um banho de bronze e nos ponham no lugar de alguém que ninguém sabe quem é, tudo passa. Hoje faço as vezes de um homem que em tempos mereceu uma estátua. Muitos anos depois ninguém sabe quem é o duque da terceira, mesmo que se esteja diante de um pelotão de fuzilamento. Ou à porta da tal segurança social, a mendigar um apoio, uma ajuda, a puxar o braço a alguém que tenha a bondade ou a possibilidade de nos auxiliar, por favor. Quieto, manso, no lugar de outro. Álvaro pensa:
“até hoje ninguém deu pela troca, pelo embuste, pela substituição atrevida e a roçar o transcendental”.
Digo: Não há mais transcendência, mais metafísica no mundo senão a dos chocolates. E a dos cartões lisboa viva. E a da gente apressada consigo mesma. E a de um supermercado encaixado na estação do comboio, um daqueles que se anunciam como o sítio do costume, daqueles que não tremem quando o iva sobe, daqueles que fazem as vezes do estado social, sem cartões, sem preocupações. Avista-se daqui, o sítio do costume. E fios de eléctrico que quase não bulem, a não ser que venha uma rajada de vento que levante as sombras e o lixo desta zona. Por entre as sombras e o lixo, como alguém trauteou aqui há atrasado. Aqui há atrasado, como se diz no norte, crente e vernacular. Se bem que o vernáculo não é propriedade de ninguém, ouviste Álvaro. Silêncio. Nem sequer a Sofisticação. Silêncio.
Muitos anos depois, entre o brega e o chique, entre o esgoto e o trendy, alguém há-de lembrar-se desta zona com saudade. E o duque da terceira que até... Quem? Aqui à frente o rio armado em mar, caudaloso, arrogante; lá para trás e em subindo, magotes de gente com a pele escaldada e as máquinas em punho. E restaurantes e enxames de copos de plástico a forrarem a calçada. E cerveja entornada, mel das gargantas que num estalar de dedos cheira a azedo, a noite processada e embalada e esquecida como um chouriço de marca branca. Esta semana, uma pechincha no sitio tal e tal. Nesta terra temos muito jeito para enchê-los, aos chouriços. São servidos?
“Não há mais metafísica senão a da Sicasal,”
carne indiferenciada e posta na montra à mercê dos gulosos da dita. À mercê dos carentes na alma, dos desapossados do amor que não aguentam a privação nem os apetites. Carne posta na rua com os temperos embotados pelo vício. Aqui à volta há muito por onde escolher, carne de aluguer, copos, gente travestida de cultura para parecer bem, para dar bom nome à praça e arredores. Duque da terceira, rua nova do carvalho, porta assim e assado. Gente em cima de palcos, a viver a vida dos outros.
Muitos anos depois diante do pelotão de fuzilamento, diante de vários pares de olhos que o escrutinam enquanto lê uma folha de papel, o coronel plagiador prepara-se para fechar o número e fugir a sete pés. Para ir ver o gelo, mas a boiar em copos. Com a vossa licença.
espero que da próxima vez que algum jornal vá à procura da minha fronha não esbarre aqui. abrenúncio.
acabou de chegar, fresquinho, fresquinho, e com uma ilustração de capa aqui do rapaz. edição da sextante, coitadinha.
rabiscos vieira
No dia em que me apaixonei pelo meu perfil do facebook ganhei forças. Acabou-se o tempo do badocha, do caixa d’óculos, do peida gadocha, das borbulhas e das paródias, e da pila pouco maior do que uma minhoca mostrada à força aos basbaques do recreio maldito em que me mergulharam. Escola C + S Pedro de Santarém. No dia em que me apaixonei pelo meu perfil do facebook pensei que a Mónica podia ter sido minha se eu à época tivesse onde pôr likes sem parecer idiota, sem ter de dizer “gosto” com a minha boca, os meus dentes versão esmalte estalado todos à vista. E ainda para mais gulosos, descarados, de uma forma que as miúdas não gostam, a não ser que sejamos o george michael da escola. Coisas de época. A não ser que sejamos o justin bieber da escola, e bom, consegui dizer isto sem me rir com os tais dentes à mostra. O esmalte que se foda.
No dia em que me apaixonei pelo meu perfil do facebook percebi que posso rir sem dar parte de fraco, a partir da sombra, enquanto construo o outro Diogo a partir das premissas mais recomendáveis do universo, sem precipitações. Os telediscos certos, o “total eclipse from the heart” para mostrar que podemos e sabemos ser retro-kitsch. O “sabotage” para garantirmos que sabemos quem é o spike jonze. O “all is full of love” para mostrarmos que somos sensíveis, que não andamos na rede só à espreita de páginas com duplas penetrações e cumshots, quer dizer, pelo menos não sempre. Para mostrarmos que sabemos quem é o Chris Cunningham, que é uma espécie de Spike Jonze mas ainda mais cool porque menos famoso. Olha para mim tão melómano, olha para mim tão fotógrafo, com álbuns de fotos rigorosamente escolhidas e sacadas a partir dos ângulos mais favoráveis. Isto depois de horas de estudo na tentativa de fazer com que o brilhantismo pareça casual. Câjual. Like. Ainda por cima com a ajuda das aplicações descarregadas da internet para o telefone que nos tornam a todos na melhor Nan Goldin de pacote. Like. Acabou-se a época do Boris Vian e da morte aos feios, se continuo a ter a beleza e o garbo de um texugo não tem problema, faço-me fotografar em contraluz. Ou mostro só um olho, essa parte do corpo que faz sempre boa figura, espelho da alma, o que dizem os seus olhos, paixão do Daniel Oliveira, esse, não o outro. Ou ponho no lugar da fotografia um poster do Jacques Tati, et pour cause. Também podemos compor com cuidado, ao estilo tipógrafo que trabalha com chumbos, as informações acerca de filmes, livros, séries, discos, destinos de férias favoritos. E escolher bonitas causas para defender, contra a brutalidade sobre animais, a favor da adopção à distância de tibetanos pobrezinhos, contra a discriminação racial, social, sexual, de género, número, substantivo e predicado, a favor da protecção dos meninos que disputam pedaços de pão com galinhas mais atrevidas. Como a Ana, mais atrevida. A revista, entenda-se. Revistas, jornais. Reminiscências do tempo do papel, o papel, a importância do retro, estão recordados? Os anos 80. Like. Os desenhos animados do Tom Sawyer. Like. O Khadafi, que já dura desde antes disso. Buuuu. No dia em que me apaixonei pelo meu perfil do facebook descobri que posso ser interessante, misterioso, desejável, só por emitir sinais com a ajuda da rede e da persona que sou hoje. Ouviste Mónica? Viste Mónica? Leste Mónica? Queres teclar Mónica? Esquece os meus dentes, o meu acne, a minha gola suada da camisa, o meu jeito trôpego para dizer gosto. Like. Eu agora adoro Tarantino. E Arcade Fire. No dia em que me apaixonei pelo meu perfil do facebook não me dei conta que fiquei apriosinado como Narciso, à procura do melhor dos meus reflexos. Percebes, Mónica, Narciso que também foi contado por Ovídio. Sabes o charme que tenho quando cito os clássicos imediatamente depois de ter consultado a Wikipedia? Mónica? Avisas-me se algum dia eu me esquecer de pagar a internet? Mónica?
o mais giro é que a dada altura o texto do artigo pergunta "e quem não conhece o irmão lúcia?". muita gente, pelos vistos.
vou fazer aqui no barraco o rescaldo da minha participação na iniciativa writing mirrors do recém-encerrado festival silêncio, foram 3 leituras no music box, acompanhadas de 3 ilustrações projectadas, subida ao palco, sem orelha, sem rabo, sem volta à praça, sem saída em ombros. é o que temos.
O primeiro milho é para os pardais, o segundo, o terceiro, os que tiver para dar serão para os meus únicos amigos, os pombos, que a canalha do bairro afasta ao pontapé.
“ratos com asas, dona São”
uma merda, são a minha única e fiel companhia, depois de todos me terem fechado a porta na cara. Depois de todos terem escolhido pôr na maçaneta o aviso “do not disturb”, não incomodar, que os velhos como eu só servem para isso mesmo, para maçar, para causar mossa na vida luminosa imaginada pelos mais novos segundo a escola da linha clara. O Tintim, pois, a quem não faltavam amigos e até uma cadela; pois eu cá tenho os pombos, a passarada, como lhes chama a Arlete que passa as manhãs com o marido sentada na cadeira da esplanada, “no feriado beba leite perfumado”, diz o cartaz que lá penduraram a armar à rima de santo antoninho casamenteiro e só a mim ninguém me pega. Também se era para ficar servida como a Arlete, valha-me deus, arre belzebu, a Arlete, de braço dado com um marido que pinta o cabelo, como se alguém acreditasse que a cabeça de um velho pode parecer-se com uma asa de corvo
“ratos com asas, dona São”
os pombos, não os corvos, que dão algum charme a qualquer história de algibeira mesmo que vazia à boleia na crise. E fumam, ambos, a Arlete e o panhonha que ela traz de braço dado, bairro acima, bairro abaixo, a dar corda aos sapatos, a chiar as solas na poeira que quase cobre o barbudo que dorme há meses no mesmo banco de jardim. E logo num jardim de gabarito, com árvores velhas como tartarugas, onde o tempo não passa, muito menos a fome e a sede
“viste? tinha um brinco no nariz”
comenta o elemento macho do casal de hipsters acabadinhos de estacionar o jipe à sombra do quiosque da moda. E parte da beleza da ficção passa por aqui, posso ser uma velha que diz hipsters e ninguém nota, ou melhor, ninguém julga, mesmo que palavras destas provoquem estranheza. Afinal vivemos na época dos unanimismos e das troikas, já não se discute, uma benesse. Hipsters só porque eu quero, só porque o diseur está para aí virado, quem sabe sequer se hipsters está mesmo grafado neste texto, se não foi recurso de última hora para classificar gente com as roupas, os cabelos, os telemóveis certos “viste? Tinha um brinco no nariz”
o sem-abrigo das barbas, entenda-se, que com tal atrevimento e capital de estranheza arrisca-se a provocar mais tufões do que uma borboleta que se farte de bater as asas, como descobriu aquele cientista que morreu há um par de anos. É por isso que eu prefiro as dos pombos
“ratos com asas, dona São”
pois, e a minha necessidade de partilhar, mesmo que milho, a minha necessidade de ter com quem estar, com quem falar antes que me atirem as últimas pazadas de terra para cima? A primeira terra é para os pardais, e o resto?
está aí a estreia da revista Duas Margens, plataforma de divulgação literária ibero-americana e tal. é chegar, descarregar o pdf e a dada altura esbarrar com um texto do paulo ferreira ilustrado por este vosso servo. enfim, há coisas piores. e outras melhores, claro.