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os grandes são assim, eles morrem e a gente põe-se em bicos dos pés, a falar de nós a pretexto deles, tentando abocanhar a nossa pequena parte da história. com o Soares nunca me cruzei, embora faça parte do nosso património colectivo, logo do meu. "foi ele que inventou os contratos a prazo", jurava a minha mãe com um esgar reprovador, logo ela que pouco falava de política à época em que eu era um menino de escola. corrijo. lá em casa não se falava de política, nem de sexo - aprendemos tudo por tentativa/erro - e de religião falava-se em registo louvor, porque havia uma oficial e inquestionável, "graças a deus muitas, graças com deus nenhumas", outra máxima da minha mãe, embora julgue que esta não tenha nada a ver com o Soares. a única política que havia lá por casa era a do trabalho, como diz a cantiga do outro, militância na família nunca houve e no máximo pode dizer-se que tanto do lado materno como paterno éramos essencialmente republicanos, no sentido em que os sobressaltos e as vidas de merda eram para todos. o meu pai, manguelas da praça da alegria, só falava de política para expor as iniquidades da ditadura, nomeadamente a obrigatoriedade da licença de isqueiro, que penalizava um profissional do fumo (3 maços de ritz por dia). não sei se gostava do Soares, do bochechas, não fui a tempo de perguntar-lhe. sei que gostava mais dos socialistas do que dos comunistas porque não tragava os revolucionários instantâneos que lhe surgiram à frente dos olhos na empresa de electricidade onde vergava a mola, embora houvesse lá por casa uma edição d'o marxismo-leninismo e o internacionalismo da classe operária. "o fulano, que era o maior engraxador do patrão, só falava em saneá-lo da firma". em 1986, sei que pai e mãe votaram no Soares na segunda volta, sem entusiasmo que transpirasse lá por casa, para não deixarem o país todo nas mãos da direita. para não darem a vitória ao facho, palavras deles. sei que gostavam do zenha e da pintassilgo, a minha mãe ainda hoje a admira, e sei que abominavam a imagem do candidato freitas aos mergulhos na piscina. na noite das eleições fomos para casa do tio fernando, assinante do avante que nunca falava abertamente de política aos miúdos - as tradições de família eram para cumprir - e sei que houve foguetes no ar. quando fomos à bica ao café las vegas em oeiras sei que o meu tio ia todo contente. talvez nos tenha oferecido um gelado, talvez não. era fevereiro, talvez não. eu fiquei feliz por simpatia, já o meu amigo ireneu ficou triste, os pais tinham vindo de angola e ele até tinha autocolantes do freitas que passeava na escola preparatória. o tempo passou, perdi o ireneu de vista e o meu tio, que engoliu o famoso sapo, acabou por morrer em cuba, ironia marxista, porque o destino é assim, troça de nós, cospe-nos na cara. morreu sem que falássemos alguma vez no Soares, depois de me tornar adulto. já o meu pai morreu por cá, cedo, também. tradições de família. somos muito disso. nenhum dos dois viu morrer o Soares, não sei o que diriam hoje. sei que preferiam o Soares ao freitas, apesar dos contratos a prazo. sei que adoravam a liberdade, cada um à sua maneira, e que ensinaram os filhos a gostar dela. sei que o Soares gostava dela, liberdade, e que homens como ele fizeram com que hoje se possa insultá-lo publicamente, chamá-lo de filho da puta para baixo, sem que se sofram consequências nem prisões. não é coisa pouca. chapeau, bochechas.