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faz agora 33 anos, tantos como os que o nazareno trazia no bilhete de identidade, à data da traição de judas. por estes dias a madrinha inscreveu o afilhado no desfile que parava a cidade, preparando-se para sentir um orgulho ímpar, e por essa inscrição pagou bons escudos, claro, porque não há almoços grátis, muito menos procissões, e ela, que trabalhava como copeira, desembolsou os 30 dinheiros de forma a que o afilhado trajasse a rigor. chovia, na tarde da cerimónia. o afilhado correu sob os beirais até um lugar acima da zona das carvalheiras mas não evitou chegar com a senha de inscrição toda ensopada. sentiu vergonha, como sempre que faz algo desastrado. miúdos de rua, pequenos gunas, troçavam dos que se iam enfarpelar de aleluias. gozaram o prato, picaram o afilhado gordo e um pouco só. enrolado na fatiota, tomou-se então de brios e saiu impante da casa. foi ter com a mana já vestido de senhor da cana verde, figura única do desfile, no meio de dezenas de anjos, senhores dos passos e santinhas. afinal, seria alguém importante. com a importância vestida foi mostrar-se à madrinha, que ainda estava de serviço na benamor, salão de chá à avenida central. as damas nos cadeirões, sorrindo condescendentes, a madrinha emocionada, atrás do postigo, no meio dos vapores das loiças. a chuva dissipou-se, entretanto. depois de jantar, a procissão haveria de sair. o afilhado voltou a ficar só, no adro da sé, trajado a rigor. os gunas voltaram, agora remetidos ao sliêncio. a fé, os trajes, os cavalos da gnr, os seminaristas, metiam respeito. os farricocos chegavam a dar pavor. dada a ordem de partida, o afilhado seguiu no cortejo, com as mãos amarradas num novelo de corda, de onde saíam quatro pontas. uma para cada menino-legionário, encarregue da missão de arrastar o falso messias. aos romanos o povo chamava de "judeus". eram esses os traidores, tanto fazia que os carcereiros tivessem nascido na úmbria ou na calábria. a culpa era dos judeus e sê-lo-ia pelo menos até ao século XX. um senhor da cana verde guardado por quatro, meio perdido por ruas desconhecidas da cidade. sem óculos, porque não consta que cristo tivesse dioptrias, uma aflição. com peruca de cachos loiros e coroa de espinhos de plástico. em frente, marche, todos compenetrados nos seus papéis. após largos minutos de calvário, o menino jesus reconheceu a entrada da rua do souto, graças à casa da sorte. uma fortuna que não protegeu jesus, o pai tinha-o abandonado. a partir daí sabia que iria sempre em frente, até ao arco da porta nova, guinaria à esquerda no campo das hortas, a família estaria então por ali. madrinha, mana, mãe, avó. não se lembra se o pai estaria presente, provavelmente não. a família de remediados, como a mãe os baptizara, haveria de ter uma kodak, mas só mais tarde. por isso, não há memória visual deste feito. e ainda há quem duvide dos milagres. um messias de pacote, de peito inchado, a fazer ver à madrinha que as centenas de escudos poupados tinham valido a pena. ela, elas, ficaram orgulhosas dele, tão sério nos seus 8 anos. com o passar do tempo, o afilhado cortaria os laços com a fé, mas nunca com a religião. está-lhe no sangue e nos medos inculcados desde cedo. o rosário gigante à cabeceira da avó. os ex-votos. as promessas de castigo. a mãe ainda diz "graças a deus muitas, graças com deus, nenhumas". que espécie pai será esse, se não tem sentido de humor?