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um dia na vida de... melhor, um dia na morte de um homem. de um jovem. 24 horas que dão corpo a um romance escrito de forma clínica, que corta cerce, sem gorduras nem sentimentalismos, numa reflexão muito bem tecida acerca da perda. a forma como lidamos, ou não, com ela, aquilo que define a vida e a morte, o modo como o próprio homem a define. e a metáfora do coração, tão estafada, tratada de forma superior. as personagens boiam numa espécie de vigilância, cada um no seu tempo e espaço que, à força da vida em comunidade, são partilhados aqui e ali com terceiros. terceiros mergulhados na dor e no espanto, gente que tem por missão alimentar o ciclo da vida, personagens que assistem mais ou menos de perto ao teatro da vida. a questão do transplante, eminentemente filosófica, atravessa o romance. a memória e a ausência também. a morte varrida do espaço público, sacrificada ao bom gosto do social contemporâneo. morremos sozinhos, a vida dos outros continua, e não há romance ou obra arte que resolva esse problema. este livro, drama pacificador, ronda lá perto.
edição teodolito.
um libelo contra a exploração e o capitalismo, passe a redundância, escrito em 1970 mas embaraçosamente actual. ainda assim, este ensaio político engajado não permite desfrutar da elegância da escrita de Galeano, servindo antes como um panfleto com mais corpo e muitas histórias ilustrativas. lendo este livro entendemos também o papel das figuras providenciais e dos anseios por líderes que restituam a dignidade aos povos da américa latina, depois de séculos de rapina e abuso sistemático, mesmo internamente. por exemplo, ajuda a perceber o que se passa em países como a venezuela, sobre a qual tanta gente fala de cátedra e a preto e branco. por exemplo, foi você que pediu um "caracazo" como o de 1989? nessa altura haveria menos deputados portugueses preocupados com a sorte - e o azar - daquela gente.
e graças ao terramoto terá uma baixa pombalina.
os nazis na américa tinham mais graça quando se ocupavam das sopas.
um entre milhões. um retrato entre milhões que poderiam ser feitos dos homens e mulheres quebrados pelo Poder, com maiúscula. neste retrato em três andamentos, vemos (lemos) a vontade dobrada de chostakovich retratada com ironia e amargura, como se estivéssemos a folhear o seu diário. aliás, é um romance que é um diário que é um ensaio, com muitas tonalidades de cinzento. porque não há virtudes absolutas nem homens impolutos nem sistemas perfeitos. aqui não há uma narrativa escorreita, não se trata de uma biografia ficcionada convencional. é antes uma espécie de colecção de aforismos, com a conhecida wit dos britânicos, em geral, e de julian barnes, em particular, que desafia temas como a literatura, o papel da arte ou monstros sagrados stratford-upon avon:
"E, no entanto, apesar disso tudo e da maneira sem paralelo como representava tiranos afundados em sangue até aos joelhos, Shakespeare era um bocado ingénuo. Porque os seus monstros tinham dúvidas, pesadelos, rebates de consciência, culpa. Viam levantar-se à frente deles os espíritos daqueles que haviam assassinado. Mas na vida real, ante o terror real, onde estão a consciência e a culpa? Onde estão os pesadelos? Era tudo sentimentalismo, falso optimismo, esperança de que o mundo fosse como nós queríamos que fosse e não como era".
um bom efeito colateral desta leitura - eu, ignaro, fiquei com muita vontade de conhecer a música de chostakovich, prokofiev ou stravinski. três homens que lidaram de forma distinta com o Poder. aquele Poder. três homens imperfeitos. a fechar, um poema-síntese que de Ievtuchenko que consta do livro e que o condensa na perfeição.
"No tempo de Galileu, um colega cientista
Não era mais estúpido do que Galileu.
Tinha plena consciência de que a Terra girava,
Mas também tinha uma família grande para alimentar".