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Javier Cercas é um contador que desassossega os leitores. e este livro é uma lição extraordinária, ou melhor, este livro contém uma lição extraordinária, ou melhor, este livro contém várias lições extraordinárias. uma lição de semiótica cosida de uma forma muito hábil, partindo de uma imagem cheia de significados para contar uma história mais complexa. e uma lição de política, com uma análise cirúrgica em relação aos mecanismos do poder, das correlações de forças, da vaidade inerente a esses mesmos mecanismos, surja a vanitas dos meandros civis ou dos recantos mais ou menos obscuros dos quartéis. este livro também é uma lição de jornalismo literário, tendo em conta o trabalho de pesquisa, as fontes, a interpretação das mesmas, o tom e os recursos estilísticos a que o autor recorre. embora o assunto seja distinto, aqui percebem-se também algumas dinâmicas que explicam porque é que, por exemplo, a questão catalã é tão sensível. há várias razões para isso, uma delas é a espinha encravada da transição, por oposição à revolução portuguesa, que permitiu ao franquismo e ao centralismo um sobreviver fora de tempo. enfim, há muita informação por digerir, mesmo em relação a personagens que nada nos dizem. mas num momento trágico, com militares de armas em punho dentro do parlamento espanhol, houve três homens que não se jogaram ao chão. esta é, entre outras coisas, a narrativa deles. a radiografia deles.
edição dom quixote
li "a resistência" em abril de 2016. escrevi então o que se segue. acrescento apenas que ao Julián Fuks, agora prémio saramago, sobra aquilo que eu cobiço: inteligência, abstracção, síntese. bravo.
à luz da raiz escolar que nos fica para a vida é oficial que não sou de letras até porque, convencido da importância dos meus guaches e do meu traço tosco, fui pelas artes e ciências, desenho, geometria e matemáticas, pastéis de óleo e físico-químicas. resultado: chegado ao ensino superior percebi que não sabia ler, interpretar, e agarrei-me aos poucos conceitos que compreendia, como por exemplo "é impossível não comunicar", da autoria de paul watzlawick, fugia do lyotard e do baudrillard a sete pés e pensava em aguarelas, águas fortes, e num deus que me ajudasse a não deixar cadeiras para trás, e agora, tantos anos depois, cruzo-me com um romance que é todo ele watzlawick, porque n'a resistência é impossível não comunicar, é impossível não pensar, porque o silêncio grita, e os ausentes marcam presença, e os medos de carne e osso vivem naquelas cabeças, e as acções de agora decorrem na memória. um livro escrito, pensado, reflectido, feito de economia narrativa e abundância de ideias, livro que corta cerce, se fosse crítico e tivesse de oferecer-lhe estrelas ficava-me pelas quatro e meia porque para chegar às cinco precisava de sentir vísceras, um grama de descontrolo na narrativa, nas personagens, que não está à vista. um grama de humanidade que, paradoxalmente, tem de estar lá, porque é impossível escrever se não formos humanos. porque é impossível não comunicar, e obrigado pela viagem aos medos passados e futuros, julián fuks. deus, que não deixa cadeiras para trás, é mesmo brasileiro.
nada como um bom sistema concentracionário para se ancorar uma verve inteligente, perspicaz, cheia de wit, à falta de uma palavra melhor em português. "o czar do amor e do tecno" tem essa verve e tem a capacidade de nos colocar perante o absurdo da vida humana. na rússia ou noutro lugar qualquer. mas a pátria de lenine, putin e dos ursos colhe melhor na imaginação do leitor. e no entanto, apesar de muito bem documentado e de escrever com uma sagacidade notável, falta ao autor aquilo que ele encontra aqui e ali nas suas personagens: a tragédia de se nascer russo, com tudo o que ela implica, nomeadamente a nível literário. e se o livro nos mergulha de forma satisfatória naquele universo, o autor nunca deixará de ser um estrangeiro. é que o abismo daquelas almas já foi dissecado pelos maiores. as contradições, a cobardia, as ilusões, alguma universalidade, até, por paradoxal que possa parecer. todos nos revemos neles. o que não é o mesmo que escrevermos sobre eles. e mais. tanta personagem com tão apurado sentido de humor, caramba, chega a ser mais inverosímil do que o brilho encerado do bigode de estaline.
edição teorema
óptima síntese do caldo político que levou ao triunfo de lenine em 1917, num contexto de guerra na europa e de múltiplos interesses em jogo. foram os alemães que cederam a passagem ao líder de apenas uma das facções revolucionárias em disputa, permitindo-lhe regressar à terra natal, apostando numa desestabilização da rússia que a retiraria do conflito. azar dos távoras, o regresso de lenine foi um pouco mais além. em termos simbólicos e em jeito de pista para o futuro, há um detalhe delicioso. no comboio selado, lenine insistiu que não se fumasse nos compartimentos e corredores, deixando apenas o wc da carruagem para esse efeito. e fumava-se muito. naturalmente, com as necessidades fisiológicas entraram em conflito com o vício, e instalou-se a confusão. foi então implementado um sistema de senhas, com os números 1 e 2. 1 para necessidades, 2 para fumaças, com as primeiras a terem prioridade sobre as segundas. estava assim inaugurada a famosa burocracia soviética. de tudo o que veio depois, sabia-se muito pouco.
edição temas e debates
à partida nada me faria pegar neste clássico. quase 800 páginas na vida de uma família burguesa do século XIX, a viver numa cidade próspera da liga hanseática, como que isolado resto do mundo num jogo de deveres e aparências. e no entanto a elegância com que é escrito, a ironia fina, os momentos de absurdo (tanto para quem os lê agora como para quem os escreveu há mais de 100 anos) compensam a empreitada. há exemplos deliciosos da bolha de alienação e de falsa piedade em que vivem os buddenbrook. apenas dois exemplos deliciosos, o primeiro dos quais durante uma matiné de oração:
"- Minhas queridas! - observou certa vez a consulesa Buddenbrook que por vezes se envergonhava do aspeto das amigas. - É verdade que Deus nos perscruta o coração, mas é preciso ver que os vossos vestidos deixam muito a desejar... Não nos devemos desmazelar..."
destaco ainda um comentário aos acontecimentos revolucionários de 1848
"- Anton! - chamou a consulesa, numa voz trémula, dirigindo-se ao criado que polia as pratas na sala de jantar... - Anton, vai lá abaixo! Tranca a porta da rua! Cerra tudo! É o povo."
o volume de páginas permite-nos assistir a uma espécie de decadência suave, progressiva, durante a qual o tempo exerce o seu carácter de demolição sobre gerações que vão perdendo o pé. nada dura para sempre. embora este seja um clássico para ficar.