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excelente síntese de um processo extremamente complexo que marcou o século XX. as principais forças em confronto, a personalidade electrizante e implacável de lenine, a guerra civil, os recuos pragmáticos, a construção do trono de aço de estaline. é uma espécie de versão digest muito bem documentada, capaz de espelhar contradições e processos internos de colisão que demonstram que a revolução não foi monolítica.nenhuma o será, afinal. fica claro o lastro que o processo deixou, nomeadamente ao nível da emancipação das mulheres, da batalha pela instrução, ao mesmo tempo que percebemos que a revolução não devora apenas os seus filhos. a espaços devorou também os seus pais. na terminologia editorial, excelente revolução de outubro para totós.
edição tinta da china.
esta semana vi pela primeira vez a "janela indiscreta", não o fiz antes porque tinha coisas combinadas. e falo disto porque vim de ver o "sopro" do Tiago Rodrigues no dona maria. ou deveria dizer o "sopro" da Cristina Vidal? não, o "sopro" é do Tiago Rodrigues. como o personagem da janela, como quase toda a gente que escreve, cria, retrata, o "sopro" canibaliza terceiros, vampiriza, desfaz e volta a montar, transformando-os em personagens. a diferença é que neste caso se estende a passadeira vermelha à entidade a quem se arrancou a biografia, num jogo de ficção e realidade sagaz, inteligente, ritmado. elipses, gags, drama, um trabalho de corta e cola notável. como o personagem da janela, o autor e encenador observa, disseca e constrói uma narrativa fazendo uso daquilo que só ele vê. ou daquilo que ele inventa para melhor chegar à verdade. à sua verdade. à verdade que quer oferecer ao espectador. à verdade que o espectador acaba desejando, seduzido pela teia urdida pelo criador. e leva a sua avante com distinção, como o homem da janela. no caso do "sopro" adivinha-se a presença da ficção, apesar de o chavão dizer que a realidade é sempre melhor. o que é facto é que aqui a ficção, manobrada com argúcia, parece ajudar ao encaixar do puzzle de uma vida, a vida da ponto Cristina Vidal. e no entanto, diria que uma boa fatia do público dá a versão dos "factos" como boa, rendendo-se ao espectáculo-homenagem a uma mulher que fez a carreira na sombra e que é puxada com justiça para as luzes do palco. eu próprio o fiz. ou seja, comprei um desejo de verosimilhança. depois, no processo de digestão, pensei no papel que o fictício terá necessariamente de desempenhar no espectáculo. e na armadilha da dramaturgia e da encenação que nos leva a acreditar num real que só o é em parte. será legítimo? diria que sim mas não tenho a resposta definitiva. uma coisa é certa, feliz o espectador que sai de uma sala com matéria para pensar. bravo.
ps: o homem da janela tinha razão, o vizinho era mesmo culpado.
o cenário é a américa do século XIX mas em muitos aspectos podia ser a américa do século XXI. apesar de a escravatura ter sido abolida há muito, a segregação e os supremacismos estão muito vivos, demasiado vivos. Cora tenta escapar ao destino de grilhetas mas a cor dificilmente o permitirá, uma história mil vezes escrita, e o autor encontra forma de contá-la de novo, de uma forma sagaz, cortante. a fábula do caminho subterrâneo, espécie de hipótese mágica de salvação, é constantemente obrigada a morder o pó do real. e o real é selvagem, apesar de fazer uso do discurso dos homens. o livro não é imprescindível - um django ou um hateful eight cumprem tão bem ou melhor o papel - mas está carregado de ideias fortes. destaco a passagem que alude aos ladrões de cadáveres, destinados a uma faculdade de medicina. corpos de negros, claro, que ninguém protege, guarda ou reclama. e curiosamente é no momento de uma pilhagem do género que um personagem se apercebe de que só na morte, e usados como iguais nas mesas de autópsia, os negros têm direito à humanidade dos brancos. no fundo a estrada subterrânea é uma boa síntese um drama sem luz evidente ao fundo do túnel.
nota ainda para os agradecimentos do autor no final do livro: aos misfits, ao bowie, ao prince, ao álbum daydream nation dos sonic youth que o acompanha em todas as empreitadas de escrita. não há como não amar.
edição Alfaguara