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Almada escreveu o seu em 1925, mas só o publicou em 1938, por insistência de João Gaspar Simões, desse modo fundando o romance moderno português. À Lisboa do primeiro modernismo ("twenties") e da guerra colonial ("sixties"), Vieira contrapõe a geração dos diplomados de "call-center": "A esta hora já os camaradas da margem sul chegaram [...] quem não está, estivesse." Respiração sincopada, jargão conforme.
Como ninguém nasce de geração espontânea, nem (ou sobretudo) as personagens de romance, Vieira faz "flashback" à semana de 1980 que viu despedaçar em Camarate "o avião do nosso descontentamento". Por esses dias abriu portas o Trumps, que mudou a noite bicha: "Enquanto o Cessna fumegava dezenas de homens eram atraídos às cercanias da escola politécnica, a tentar enlaçar pela cintura um novo mundo, um ambiente mais amniótico, mais protegido." É aqui que entra João, oleiro à espera de ser moldado à sombra dos holofotes que então incidiam num "barbeiro da Rua das Pretas" apostado em transformar o rock. Lucas entrará mais tarde (e, com ele, Vanessa), apanhado já pelo VIH, febres, suores e náuseas. Vieira dribla. Pedro Homem de Mello faz "match point" e encerra o parágrafo: "No momento em que sentiste uma picadela entre as pernas pela primeira vez à vista de um macho [...] talhaste com o teu machado..." O "Bildungsroman" pede Törless (Musil), Vieira dá-lhe "Povo que Lavas no Rio".
Com este livro, Vieira trouxe a CRIL e o IC19 à ficção portuguesa. Consequência: visto de Massamá-Barcarena ao som dos Vampire Weekend, o século XXI não cabe no perfil amável da "Architectural Digest". Por maioria de razão, Edson, Luana, Silas, Patrícia e os outros não se confundem com personagens de Waugh. Talvez Rubens Figueiredo ("Aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o futuro fugiu para lá.") ou Carlos Sussekind. Afinal, o link brazuca não é figura de retórica: "O que tu precisa é de um patrão maneiro, sério, tu tem de te promover, cara."
Encharcado em literatura, nem por isso "Última Paragem, Massamá" menoriza o quotidiano da CPIS, ou Convénio Para a Infelicidade Suburbana: calimeros, evangelistas marados, redes sociais ("o que raio quer dizer um lol"), conexão heroinómana no "coração do núcleo duro Algueirão-Mem Martins", "shoppings", centros de emprego, nepotismo, maralha cabo-verdiana, stresse pós-traumático ("magalas que ficaram longe de África por intervenção de... capelões que engraçavam com cabos e se o vice-versa não se verificava fingia-se o que era necessário para não esticar o pernil..."), a tropa fandanga dos seguranças "que falam em código [e] gostam de molhar a sopa nos amigos do gadanho", paneleiros bem-posicionados e outros nem tanto, a utopia de "pôr o capital de joelhos", mamadas, tudo como num "reality freakshow" bem esgalhado.
E o "plot", cadê? Lucas, Vanessa e João são vértices de um triângulo impossível. De João já se falou. Lucas gosta de pau preto. Desfasada da realidade (Lucas não é Vronsky), Vanessa repete às 07:26h da manhã o gesto de Ana Karenina, apanhando de surpresa "os utilizadores da passagem superior pedonal da estação de Massamá-Barcarena".
Parece-me supérfluo acrescentar que a prosa está bem calibrada.
por Pedro Vieira às 15:27
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